Monday, November 20, 2006

Uma aventura... no cartório (parte I)

Como o elevador parecia não funcionar desde o pós-guerra, subimos sem medo, naquela tarde de Outubro, as escadas escuras, encardidas, sem tocar o corrimão seboso, do 6º Cartório Notarial de Lisboa, a cargo do excelentíssimo Dr. Botelho. Era no primeiro andar, à esquerda, a porta escancarada que ia fazer de nós três, cidadãos portugueses no pleno gozo dos seus direitos, fundadores de uma Associação. Havia só que assinar uns quantos papéis, esperar o selo branco e obteríamos a grandeza de uma pessoa colectiva. Já sabiam quem nós éramos e mandaram-nos aguardar num banco de pau, ao lado direito da porta. Sentámo-nos, sem saber que tínhamos pela frente mais de duas horas de espera, e às dezasseis horas, em ponto, a porta fechou-se deixando do lado de fora os cidadãos, livres como nós, que ainda quisessem autenticar uma fotocópia ou reconhecer uma assinatura. Com a porta fechada, respirava-se o ar viciado, o cheiro a fotocópias e a papel húmido da repartição. No corredor, o senhor da bata branca, suja de nódoas, arrastava sobre o soalho carunchoso uma pesada máquina com escovas e lâminas, cansado voltava atrás para ir buscar uns livros. Na vitrine, na parede sobre uma velha secretária, lia-se em letras garrafais ‘O fácil está feito, o difícil faz-se, o impossível vai fazer-se, Milagres não se fazem.’ Passou-nos pela cabeça que no dia seguinte estaríamos numa banheira com gelo, de cabelo rapado e sem rins. Mas acordados do pesadelo, chamou-nos a secretária – era a nossa vez - e seguimos pelo corredor em frente. Virámos à direita, onde se alinhavam cacifos cinzentos, pesados de livros e vasos com plantas secas, até uma antecâmara onde nos sentámos, à espera. As cadeiras negras, empoeiradas, rangiam, e na parede os retratos dos antigos notários, alguns a preto e branco, outros a cores, perfeitamente alinhados, como nós, aguardavam. Aguardavam uma última moldura para completar a cronologia. Uma história de senhores, de gravata ou de papillon, de senhoras de cabelos rijos de laca ou apanhados com bandelette, que deram a vida pela certidão e pelo selo, que redigiram a tinta permanente tantos testamentos e escrituras. À esquerda, uma porta aberta deixava ver a secretária do notário, onde se amontoavam papéis, todos muito complicados e numerados, e três senhores que se sentavam de cotovelos apoiados nos processos, pacientes, finalizando uma grande escritura. O assunto era difícil, e por isso aguardámos, não conseguindo conter os ataques de riso, que o nervoso miudinho nos atiçava. A senhora assistente do notário, de olhos cansados, ensombrados nas profundas olheiras, sabia os nossos nomes, verificou os nossos bilhetes de identidade e recolheu as nossas moradas. Dactilografou usando só os dedos indicadores e imprimiu o rascunho do documento, colocando-o na pilha dos processos que o senhor notário ainda ia despachar, e levando as mãos à cabeça, suspirou. Sentados à mesa do notário, na azáfama de tanta escritura incompleta, de folhas soltas e carimbadelas enérgicas, ouvimos o tão desejado ‘Boa tarde’. O Dr. Botelho tinha os lábios superiores frouxos de tanta escritura lida em voz alta, mas parecia ainda capaz de uma derradeira, a constituição da nossa associação, que ficaria registada para sempre a folhas 95 e 96 do livro número 690-H das notas daquele cartório. Sem mais demora, deram o senhor notário e sua assistente, início à leitura da escritura, da qual constavam os nossos nomes, moradas, os nossos propósitos, rematados pela conclusiva frase ‘Assim o Outorgaram’. Um de nós teve a infeliz lembrança de invocar o disposto no artigo 14º da Lei n.º 23/2006 para pedir a isenção do imposto de selo: gerado o alvoroço na repartição decrépita, consultados todos os códigos, só a Doutora Zulmira, antiga notária, foi capaz de resolver a situação, um problema já velho. A isenção não seria concedida porque o pagamento do imposto não constituía, naquele momento, encargo da associação, mas sim de nós três, os outorgantes. E assim ficou redigido: ‘consigna-se que o imposto do selo previsto na verba 15.1 da TGIS, no montante de 25,00 € é cobrado e liquidado nesta escritura.’

continua

Sunday, November 19, 2006

XLVII.

as tardes de novembro
nem são frias
nem aquecem a distância

são escuras
mas não têm estrelas
e arrastam-se
por caminhos de alcatrão longos entre as montanhas
vão tão longe quanto posso imaginar

quantas tardes tem novembro
assim
pouco frias e mal escuras
para eu esperar

quantas?