Wednesday, December 13, 2006

Uma aventura... no cartório (Parte II)

E com a cobrança do imposto de selo consignada, a Doutora Zulmira ainda nos disse: “...mas se quiserem pedir o reembolso do imposto, podem sempre um dia destes, amanhã ou assim, escrever uma carta de reclamação à Direcção Geral dos Impostos!” Encantados com a solução da eremita-dos-papéis-dos-selos-e-dos-carimbos, não nos expressamos efusivamente: não nos podíamos esquecer que estávamos a meio de um acto de grande solenidade. O Doutor Botelho passava agora à leitura do Documento Complementar da nossa escritura que continha os Estatutos da Associação. Ao ritmo que começou, o processo parecia não ser longo. As palavras estavam até a abanar-lhe os lábios e as bochechas com alguma energia e ia corrigindo aqui e ali um acento, uma letra maiúscula. Nós seguíamos a leitura dos estatutos pela nossa versão, à qual tinham sido feitas, pela mão do doutor, pequenas mas preciosas alterações: por exemplo em vez de sócios, associados (!) faz toda a diferença. Estava mesmo a correr bem. Muito bem até. Ouvem-se quatro saltos altos no corredor, em crescendo, e entram na sala duas senhoras, escriturárias do cartório, muito preocupadas. Ficávamos a saber que o Cartório encerrava na segunda-feira e que todos os seus livros de notas estavam a ser selados para serem transportados para os novos arquivos. Todos os assuntos possíveis se abateram sobre aquela mesa, parecendo querer interromper a nossa escritura por tempo indeterminado: o Dr. Botelho telefonava para casa a avisar que não ia jantar, a senhora assistente corrigia aqui e ali outras escrituras e carimbava energicamente, o secretário de olhos caídos quase mortos introduzia, uma a uma, com muito calma, folhas de papel no destruidor de documentos, pelo meio punham-se testamentos, assuntos de mortos, casados, grávidas, compras e vendas, atuns, e salsichas da dispensa, e selos, e folhas e tudo, descontrolado e baralhado. O tempo passava e nós assistíamos sentados ao caos do cartório em véspera de Encerramento. Num fôlego final, o Dr. Botelho pegou nos nossos documentos, riscou, trocou e alterou os Estatutos de uma ponta à outra e depois de muitas versões, correcções e redacções, vinha nas mãos do assistente a Versão Final. Agora era só numerar as folhas, assinar e rubricar, e no fim pagar. Com a sua caneta de tinta permanente, de ponta larga, desenhava, tortos, os números das folhas. Chegando ao fim, satisfeito, verificou: tinha-se enganado, a numeração não estava correcta. “Façam-me aí uma nova impressão da escritura!” Recomeçou a árdua tarefa, com cuidado para não borrar e nós íamos já rubricando os cantos das folhas. Era a folha final e bastava assinar... mas atenção... só restavam duas linhas na folha do documento e nós éramos três. Não se pode assinar na mesma linha, uma velha norma do notariado, cada folha leva só 25 linhas! Havia que acrescentar folha outra em branco para que tudo ficasse conforme. Eram 19h45m, e eu pagava a escritura. Saímos os três porta fora, com a sensação de ter vivido um momento histórico. Com fome, sede e as pernas dormentes, ríamo-nos sem razão. Fomos ao McDonald’s na esquina e engolimos tudo sem pensar.

E a nossa escritura, tão pública, consta para sempre de folhas 95 a 96 do Livro de Notas de escrituras diversas número 690-H do 6º Cartório Notarial de Lisboa e dela faz parte um belo documento complementar.